domingo, 10 de abril de 2011

O Olho do Diabo

Shadows City não está em nenhum mapa, mas existe e fica no oeste americano. Próxima ao Texas. Dizem que a cidade foi esquecida por Deus e que o Diabo ao sair correndo, deixou um olho para trás. Cidade que foi muito rica em ouro e que hoje somente moribundos, facínoras, biltres e prostitutas, perambulam por estas terras. Uma maldição assola esta cidade, arrasando ainda mais o que já estava arrasado, Esta maldição trouxera bruxas, dragões e espectros. Espectros esses que vinham de tempos em tempos, ceifar as almas dos pobres moradores que insistam em viver, ou melhor, morrer em Shadows City...


Em algum lugar do Texas 1862




— Segurem este negro! Vocês são uns molengas! — gritava um homem carrancudo que segurava uma pistola, sentado sobre seu cavalo. O negro movimentava-se rapidamente. Dava, giros e gingava como se dançasse. Num salto, pulou por cima dos três pistoleiros que tentavam pegá-lo, usando a sola do pé descalço, chutou, derrubou os três. De cima do cavalo, o cowboy mirou sua pistola no negro dançarino. Deu três tiros e nenhum o acertou. Com outro salto, subiu mais alto que o cavalo, acertando o rosto do homem, com um chute violento, derrubando-o. — O seu moço num levanta não! Num quero matar ocê! — disse o negro num idioma que os cowboys nunca ouviram antes. De repente sentiu uma pancada na cabeça e tudo ficou as escuras.




— Desgraçado! — o homem cuspiu o sangue que saia da boca. — Por que demorou tanto para acertá-lo? Ele deve ser um escravo fugitivo e amaldiçoado. Dei três tiros no safado e nenhum acertou! Ninguém normal pula deste jeito. — reclamava o homem inconformado com a agilidade do rapaz em esquivar-se dos tiros. — Levem-no para o trem. O lugar dele é em Shadows City.


oo


O trem parou num lugar deserto, por volta das onze da manhã. Três homens atiraram o negro de cima do vagão. Estava amarrado. O sol ofuscou a visão do estranho. — Venha seu crioulo. O trem não vai até a cidade que o chefe mandou. — disse o cowboy. — A cidade fica naquela direção... — apontou. —Se é que você vai chegar lá. — disse o outro. O terceiro cuspiu o fumo que mascava, no rosto do rapaz e acertou-lhe um chute na cara, levando-o a nocaute mais uma vez.


oo


Depois de horas o negro acordou com o rosto ardendo pelo sol forte. Com muito custo conseguiu desatar as mãos e pés. Com a boca seca e o corpo dolorido, levantou e começou a caminhar lentamente, na direção apontada...




Nochay colhia ervas, quando avistou alguém caminhando trôpego. Largou tudo e correu para ajudar. O sol castigara o pobre coitado que agora bebia água servida pelo índio, afoitamente. Ao levantá-lo para pô-lo na carroça, viu um colar de contas pretas e vermelhas, que cruzava seu peito e partiu para cidade.


Já estava anoitecendo quando chegaram à cidade. Nochay sabia que não podia ficar na rua àquela hora, era muito perigoso. Principalmente por ser lua cheia. Coisas estranhas aconteciam naquela cidade sombria.


Em casa, acomodou o homem na cama e depois espalhou uma mistura de cinzas com algumas ervas, ao redor das portas e janelas. Disse algumas palavras em apache, colocou um chumaço de algodão, em cada ouvido e acocorou-se ao lado da cama. Esperando que algo muito ruim acontecesse.


As ruas de Shadows City estavam desertas. Sons estranhos ecoavam na escuridão. Uma bruma densa se formou e de dentro dela, espectros trovadores, montados em dragões coloridos surgiram.


O prefeito olhava assustado, pelo canto da janela. Fechou a cortina e correu para o outro cômodo da suntuosa casa. Paul Mc Loophe, é o prefeito mais covarde e ordinário que Shadows City já teve. Feitor de obras faraônicas e superfaturadas, destinou grande parte da verba da prefeitura para construção de uma fortificação no subsolo de sua casa. Este era o quarto mandato dele, não porque era um bom Prefeito, mas porque não existia ninguém para candidatar-se ao cargo. E foi para o subsolo que ele e sua família correram. Cada um tirou do bolso um par de pequenas rolhas, feitas da mais pura cera de abelhas e tamponaram seus ouvidos. Os espectros eram cobertos por mantos negros, de feições horríveis. Cada montaria draconiana era de uma cor. Cinco no total. Foram até o centro da cidade parando no cruzamento principal. O dragão vermelho escuro deu dois passos à frente e o espectro desceu de seu dorso. Parado no centro de um semicírculo o espectro pigarreou...


Numa das casas daquela rua, Roy Rolha de Poço procurava desesperadamente os tampões para seus ouvidos.


— Maldita seja minha avó surda! Onde ela colocou meus tampões! — o gorducho comilão fuçava nas gavetas.


O espectro começou a declamar o poema de sua autoria. Qualquer tímpano desprotegido seria dilacerado levando o corpo a uma desocupação espiritual. — Ah não! Esse outra vez? — resmungou o dragão vermelho claro, que para muitos era cor de rosa.


Os olhos de Roy viraram para dentro de suas órbitas e apenas duas bolas brancas iam de um lado para o outro. Suando e tremelicando, parecia um zumbi.


O espectro caminhava de um lado para o outro, compenetrado no poema que recitava. A mão direita apertava seu peito e a esquerda estendida para frente, demonstrava o quão profundo era o poema, enquanto lágrimas incandescentes, vertiam dos olhos de sua montaria. Para alguns, a dramaticidade da representação era soberba, era o que pensava o otimista dragão amarelo. Para outros, totalmente, descabida e sem jeito, era o que pensava o simplista dragão castanho. O dragão cinza não achava nada, era neutro e muito deprimido. O dragão vermelho claro ou rosa, como alguns gostavam de achar, simpatizava-se com todos, menos com esse poema, esse era um tédio.


Os dragões possuíam uma membrana que tamponava seus ouvidos, quando não agüentavam mais ouvir as ladainhas que os espectros recitavam. Eram poemas chatos, melancólicos, dramáticos, sempre sem sentido algum e muitas vezes repetitivos. Só eles entendiam. E quando faziam jogral, era devastador. De tão ruins que são seus poemas, as almas dos humanos tendem a deixar seus corpos. É nesta hora que os espectros se apoderam delas.


O pobre e roliço Roy, foi caminhando como zumbi até os espectros. A cada trecho do poema, sua alma tentava sair do cilindro carnal. Chegando bem perto dos seres, sua alma apontou fora do corpo mais uma vez e um laço de fogo, jogado por um espectro, agarrou-a pelo pescoço.


Ajoelhado e cabisbaixo o espectro terminou seu recital. O dragão vermelho aguardava em meio a uma poça de lágrimas incandescente. Roy Rolha de Poço, caiu como um saco vazio, estatelando-se no chão.


A bruma densa formou-se novamente e os espectros partiram levando a alma do pobre rapaz.


oo


Nochay deu um pulo quando viu o corpo do forasteiro negro, flutuar na cama e uma luz vermelha em forma de guerreiro, pairar por sobre o homem. Em seguida viu a luz voltar para dentro do corpo. Nunca tinha visto aquilo. Nem mesmo antes de fugir de sua tribo, viu algo parecido nas pajelanças.




oo


O dia amanheceu e o corpo vazio permanecia caído no meio da rua. O coveiro tirava as medidas enquanto aguardava pela perícia que seria feita pelo xerife Tedy Boca Podre. Diz a lenda, que o xerife tem este nome, pelo fato de ter comido um gambá quando criança, outros, que o orifício de seu traseiro foi colocado onde deveria ser a boca. O fato era que ninguém agüentava o mau hálito.


As pessoas aglomeravam-se em torno do corpo caído. De repente uma correria, era o xerife que vinha chegando. As pessoas cobriam suas narinas e bocas com lenços e viravam os rostos, à medida que ele passava. O coveiro aguardava impaciente a chegada da autoridade. Acostumado ao mau cheiro dos corpos, às vezes em decomposição, aguentava ficar na presença de Tedy por no máximo meia hora. O reverendo Merrin apareceu com o nariz tamponado e foi abençoar o corpo somente, pois a alma havia sido levada pelos espectros e seus dragões coloridos.


oo


Nochay abriu as cortinas da casa, que era composta por apenas um cômodo. Banheiro não havia, nem do lado de fora. Apenas um velho penico, que ficava em baixo da cama. E era nele que o índio estava sentado quando o forasteiro acordou. — Onde estou? — perguntou ainda meio sonolento, numa língua estranha. — Como? — Você não fala inglês? — perguntou o índio. — Desculpe. Onde estou? — perguntou agora em inglês. — Em Shadows City. — respondeu Nochay jogando seus dejetos pela janela, diretamente aos porcos que viviam atrás da casa. — Quem é você? — Benedito. — Eu sou Nochay, da tribo Chiricahuas. De onde você é? — Eu sou de Salvador, Bahia. — Não conheço esse lugar. Onde fica? — Brasil.


O índio continuou sem saber onde era. Então Benedito explicou que fugiu do país em um navio que transportava cacau. Aprendera falar inglês trabalhando na construção da ferrovia Bahia and San Francisco Railway. Construída pelos ingleses.


— Estou com fome. Tem algo pra comer? — perguntou o negro.


Nochay serviu um pedaço de carne de porco que ele mesmo criava no fundo da casa. Saciando assim a fome de Benedito. Deu roupas limpas e um par de botas. O índio então contou que era o único médico da cidade. Usava seus conhecimentos indígenas para curar as pessoas. E fazia mais alguns bicos. Queria perguntar sobre o acontecido na noite anterior, mas achou melhor esperar. A recuperação rápida do homem deixou-o intrigado.


— Vamos, vou mostrar-lhe a cidade. — disse o índio.


Caminharam pelas ruas. Todos olhavam o forasteiro. Eram dez da manhã. O Golden Valley Bank já estava funcionando. Passaram pela mercearia Golden Valley, onde se vendiam tampões para ouvidos, feitos com cera de abelhas. Os melhores. Passaram também pela igreja. Uma placa trazia os seguintes dizeres: Golden Valley Church - Nesta Cidade, além de fé você encontra ouro. Mais abaixo uma correção: encontrava ouro. O padre Merrin acenou para Nochay que retribuiu. Mas quando ele olhou para Benedito, um arrepio subiu pela espinha e suas pernas amoleceram. Com um rápido sinal da cruz, entrou correndo para o templo.


— Esta cidade já foi muito rica. — começou a falar Nochay. — O ouro atraiu muita gente pra cá. A história do ouro se espalhou pelo Texas e quadrilhas passaram a saquear a cidade. Até que uma das minas de ouro desabou e soterrou cinco garimpeiros. Toda cidade se mobilizou para o salvamento. Especialistas vieram e tentaram cavar uma outra entrada para a mina, mas ela também desabou, levando junto à ponte da ferrovia. Alguns dias depois, os mineiros soterrados descobriram um túnel que passava por baixo do cemitério, atrás da igreja. Cavaram por dois meses. Acabaram saindo em meio aos túmulos e mausoléus. Era noite de lua cheia. Magros de dar dó, com suas roupas sujas e rasgadas, foram surgindo debaixo da terra. O padre, que cuidava da igreja, achou que eram mortos vivos e chamou o xerife, que matou todos com tiros na cabeça. Tempos depois começou a maldição dos espectros trovadores e seus dragões. O padre foi o primeiro a morrer. Dizem que a cena era muito bizarra. Havia um crucifixo enterrado... Deixa pra lá. Eu ainda não morava aqui, vivia na minha tribo, até me engraçar com Dos-Teh-Seh, filha do Chefe Mangas Coloradas... — Nochay fechou os olhos e começou a imaginar a bela índia. De repente uma flecha fincou no chão, a centímetros do seu pé. O som de gritos o fez sair dos pensamentos.


— Pelos chifres de um búfalo! É melhor a gente correr. — gritou Nochay já correndo. — É o bando de Cochise! Marido de Dos-Teh-Seh! — ele já estava longe.




Quando Benedito se virou, viu uma flecha disparada em sua direção. Deu um salto envergado para direita e a flecha passou rente ao tórax. Ao cair de pé viu um grupo de índios a cavalo e mais três flechas foram disparadas. Com outro salto envergado, agora para esquerda, acertou duas, com um dos pés, partindo-as ao meio e a terceira pegou com uma das mãos. O índio mais adiantado saltou do cavalo ainda em movimento, para cima de Benedito, O negro apoiou-se com o braço esquerdo no chão e com as pernas no ar, acertou o peito do índio, que voou longe. Com uma seqüência de saltos, virou-se na direção dos outros índios, que, fora de suas montarias, corriam ao seu encontro, empunhando machadinhas.


Todos que estavam no saloon de Billy Jackson saíram para ver o que acontecia. De repente a rua estava tomada pelos populares de Shadows City. Todos olhavam o negro desconhecido, dar saltos, piruetas, chutes e bordoadas nos cinco índios. Dois deles desferiam golpes, simultâneos, com suas machadinhas e Benedito esquivava-se impressionantemente.


— Só vi um cara dar pulos assim. — comentou um cowboy. — Como era mesmo o nome do cara... Grilo... Besouro... — tentava se lembrar. — Gafanhoto! Isso mesmo... Era gafanhoto.


— Ah! Aquele que foi encontrado morto, enforcado, no prostíbulo? — Lembrou um outro. — Mas aquilo era Kung Fu. Isso não parece ser Kung Fu. — falou o homem.


Com os cinco índios caídos, Nochay apareceu saído de trás de uma carroça estacionada.


— E não voltem mais aqui! Seus covardes! — gritava Nochay para eles, que agora fugiam em suas montarias. — Você é bom mesmo! Que tipo de luta é esta? — perguntou o índio.


— Capoeira. — respondeu.


— Hum! O que significa este colar? — perguntou Nochay. — Isto é uma guia. Uma ligação direta com meu Orixá. — explicou. — E quem é esse Orixá? — Ele me protege, me ajuda. É Exú. — Um espírito. — concluiu Nochay.




Várias pessoas chegaram para ver o forasteiro de perto. De repente a multidão dispersou-se, abrindo caminho e tampando suas narinas. Era alarme falso. Quem vinha passando era Bob o catador de estrume em sua carroça cheia. Todos suspiraram aliviados, por pouco tempo. Logo atrás da carroça, vinha o xerife.


— Rápido, ponha isso no seu nariz. — Nochay deu um chumaço de algodão para Benedito tamponar suas narinas.


— Ora, ora! Até que enfim alguém bom de briga. Aqui nesta cidade só têm maricas. — o xerife falava e as pessoas viravam o rosto. Uma mulher, que estava ao lado do xerife, tampava seu nariz com duas bolotas de estrumes recolhidas do chão. — Não é mesmo Nochay? Quem é seu amigo?


— O nome dele é Benedito. Encontrei-o quase morto lá na planície. — respondeu o índio.


— Para quem estava quase morto, o senhor está bem vivo, não é mesmo? — duvidou o xerife, olhando-o bem de perto. — Se você for escravo fugitivo, terei que devolvê-lo ao seu dono. Mas enquanto isso... — Tedy viu no rapaz, uma forma de lidar com os problemas da cidade. — Vamos comemorar a vitória sobre os índios, no Saloon de Billy Jackson. — e deu um longo abraço em Benedito que já começava a passar mal.


Dentro do saloon a música rolava solta. Billy servia um drink ao xerife, a base de licor de menta, wihsky e muita hortelã. As irmãs, Glória e Gaynor, empolgavam a todos com suas maravilhosas vozes. Ray, tocava o velho piano sem olhar. Numa mesa, bem no canto do recinto, estavam Nochay e Benedito. Muitos já estavam embriagados. Justamente dois destes, os falsários, irmãos Vanili, chegaram na mesa onde estavam os dois.


— Hei! — gritou um dos homens com uma pistola apontada para ele. — Você chegou agora e já quer bancar o herói? — o homem gritava, cuspia e dava goladas numa garrafa de wihsky.


A música parou e o ar pesou. Não, dessa vez não era o Xerife Tedy.


— Ei! — gritou o outro. — Estamos falando com você!




Benedito agora de pé encarava o homem armado.


— Adeus crioulo! — gritou o cowboy disparando três vezes.


Todos olharam com estranheza, pois a arma falhara nas três tentativas. Os irmãos Vanili ficaram constrangidos, pois nunca a pistola de um Vanili falhara. A única vez que passaram por um constrangimento destes na vida, foi quando tentaram a carreira de cantores num saloon em Laredo. Benedito fitava os dois com um olhar estranho. Nochay escondia-se debaixo da mesa. O homem que atirou primeiro, inconformado, abriu o tambor e conferiu as balas. Estava tudo certo. Apontou para um bêbado encostado no balcão e atirou. O susto foi geral. O bêbado caiu com sua cabeça estourada. O segundo homem também sacou sua pistola e disparou, sem sucesso. Apontando para o alto o homem disparou, acertando o candelabro e arrebentando a corrente que o segurava. A queda acertou uma mesa onde alguns cowboys jogavam carteado. Iniciou-se uma grande confusão. Pancadaria geral. Ray escorregou seus dedos pelo teclado do velho piano e uma canção dava fundo musical para o quebra, quebra.


— Adoro isso! — gritou o pianista enquanto se abaixava para dar passagem a uma garrafa de whisky que vinha voando.


Benedito esquivava-se e dava golpes de capoeira. Nochay rastejava por debaixo das mesas procurando uma saída.


Empolgados com a confusão, não perceberam a noite que chegava. Até que o xerife apareceu na porta do saloon dando dois disparos para o alto.


— Vocês estão loucos? — gritou ele. — Já está anoitecendo e os espectros vão chegar. Todos para suas casas.


Todos que estavam dentro do saloon esperavam que o xerife Tedy desse passagem, mas ele apenas ficou esperando. Desesperados, todos correram e pularam, arrebentando as janelas laterais do saloon.


— Você também, Ray.


— Depois do Senhor. Vou afinar meu piano. — disse ele com a cabeça enfiada dentro do instrumento tentando fugir no mau cheiro.


Após toda a correria as ruas ficaram desertas e Benedito se viu só. O vento soprou e um arbusto seco passou rolando.


A bruma densa apareceu e de dentro dela os espectros vestidos de mariachis surgiram montados em seus dragões coloridos. A noite seria longa. Os espíritos desceram de suas montarias draconianas e ajeitaram-se em seus lugares, ajeitaram seus sombreiros. Os dragões posicionaram-se, cada um atrás de seu espectro. O primeiro espectro o do dragão amarelo, soprou o trompete. O som saiu num floreio magnífico e seu dragão cuspiu uma labareda alaranjada, pegando os outros desprevenidos. O espectro do dragão cinza desdenhou. Num dedilhado incrível, no seu violão de cinco cordas, o espectro do escamoso castanho que agora estava acaju, deu um pulinho, batendo os calcanhares em sincronia com o dedilhado. O Espectro do vermelho escuro cumprimentou o amigo pela destreza no dedilhado e deu continuidade no acompanhamento com o seu violão. O espectro do cinza desdenhou mais uma vez, e seu dragão cuspiu uma fagulha no chão. O espectro do dragão vermelho claro, que alguns chamavam de rosa, tocou seu violino. Todos agora olhavam para o espectro do dragão cinza. Ele deu de ombros, e começou a balançar dois chocalhos. Até que estava no ritmo da música. Mas na hora que suas vozes ecoaram noite adentro foi um martírio. Desta vez somente tampões feitos de cera de abelhas dariam conta da desgraça sonora.


Benedito foi tocado pela voz horrenda dos espectros e seguiu em direção à encruzilhada. Ao chegar próximo de onde estavam, parou. Seu corpo e sua alma entraram em intenso embate. Uma luz vermelha saiu de seu peito e tomou forma de enorme guerreiro negro, portador de uma espada de luz. Benedito abriu os olhos e sorriu para os espectros, correndo em seguida. Assustados com o fato inusitado, os espectros continuaram a cantar. O vermelho claro assumiu a cor rosa e correu, largando seu espectro. O dragão amarelo cutucou com sua pata, o espectro à sua frente, que não deu bola. O do dragão cinza atirou um dos chocalhos na cabeça de outro, que se virou nervoso. Ao se deparar com o guerreiro se posicionou para combate, chamando os outros.


O guerreiro que pairava no ar, envolto numa luz vermelha, desceu com uma força incrível, afundando a terra onde pousou. Toda cidade estava em transe. Ou pelo menos quase toda.


Nochay viu quando Benedito correu na direção da igreja. Certificou-se de que ninguém o olhava. Curiosamente não viu o xerife nem o padre Merrin. Era hora de sair dali.Todos os outros andavam como zumbis. De fininha foi desvencilhando-se de todos. Foi até sua casa, pegou a carroça rumando para a igreja.


Padre Merrin rezava ajoelhado, em frente à porta de acesso à escadaria que levava até a mina, embaixo do cemitério. Nos fundos da igreja.


Salvador - Brasil, dias antes de Benedito embarcar.


Atabaques soavam num ritmo frenético. Um homem negro, com um turbante e vestido de branco, cheio de penduricalhos, girava de um lado para o outro. Balançava o corpo, dando baforadas num charuto e goladas numa garrafa de cachaça. Parecia estar em transe. Benedito estava nu, ajoelhado e embebido em sangue de cabra. Os atabaques pararam e o homem que dançava, falou com voz estranha:


— Ó mizinfim, suncê tem agora o corpo fechado. — disse o pai de santo, dando tragadas no charuto e soltando a fumaça em volta de Benedito. — mizinfim vai pega embarcação que leva cacau pros estrangeiro... Os Orixá vão pô suncê no caminho... Vai até a cidade que os homi munta cavalo, dá tiros pro arto e fala ingreis. Suncê vai sofrê, mais num vai morrê. — os olhos do homem estavam virados e ele dava trancos com o corpo. — Um filho da terra vai te ajudá, outros não vão gostá... Atrais da casa do Senho, suncê vai encontra um buraco, bem na morada dos morto. Cuidado com quem cuida da casa do Senho... Cinco espírito vão querê sua alma. Mas Exú vai te guarda.... Não escuta suas canturias... E no fundo do buraco, em baixo da casa do Senho, muito oro vai encontrá... mais o mais importante è preda vermeia. O zóio do Diabo. Muitos poder ela vai te dá e a liberdade pra nóis suncê vai trazê...


Benedito, de olhos fechados, levantou. Uma mulher trouxe-lhe um colar de contas vermelhas e pretas e colocou-o, cruzando seu peito, deslizava suas mãos pelo corpo besuntado em sangue, balbuciando palavras incompreensíveis...




oo


— Olá seu padre. — disse Benedito em português. — Ocê que chama os espectros não é? O padre Merrin assustou-se com a voz. Olhou para trás e viu Benedito. Aquele frio na espinha o deixou amedrontado. Sentia que o negro tinha ligação com algo ruim. Segurou o terço com força, apertando-o contra o peito.




— Você veio atrás da pedra, não é? — perguntou o padre.


O olhar diabólico do negro respondia a pergunta.


Com um golpe violento, girando no ar feito parafuso, acertou o padre na cabeça. O golpe quebrou o pescoço, fazendo a cabeça do padre girar até ficar ao contrário, pondo fim à vida do pontifício. Uma onda azulada saída do terço que o padre segurava, percorreu toda a sala, derrubando a proteção espiritual que existia no local. Arrombou a porta que dava acesso à escadaria e desceu até a mina. Chegou a uma antessala repleta de enormes pepitas de ouro. No fundo da sala estava a pedra vermelha.


No cruzamento principal da cidade os espectros e seus dragões, travavam uma batalha ferrenha com o guerreiro de luz. Jogavam seus laços incandescentes. Mas, golpes de espada os cortavam ao meio. Bolas de fogo cuspidas pelos dragões explodiam, uma atrás da outra, no peito do Orixá protetor.


Nochay ao chegar na igreja, encontrou a porta aberta. A avó do finado Roy estava sentada no último banco, a rezar. A velha surda nem notara sua presença. Nochay achou estranho. Caminhou cuidadosamente até o fundo do templo. O corpo do padre Merrin estava caído no chão com o pescoço torcido. Achou outra porta aberta e desceu as escadas, até chegar a antessala.


Benedito contemplava a pedra vermelha. O Olho do Diabo. Sentiu que não estava sozinho, ao virar-se deparou com Nochay que disparou três flechas de uma só vez. Benedito pulou e girou no ar, acertou duas flechas, mas a terceira penetrou em sua coxa esquerda proporcionando uma dor lancinante. Olhou assustado o sangue que escorria. Benedito quebrou a flecha e correu de encontro ao índio que atirou mais duas. Essas acertaram o peito do negro.


— Não, isso não pode acontecer! Eu tenho o corpo fechado. — disse Benedito em inglês, enquanto regurgitava sangue.


— Você deixou seu espírito protetor lá, lutando com os espectros, se esqueceu? — retrucou Nochay.


— Mas... eu matei quem cuidava da igreja! — disse entre uma suspirada e outra.


— Quem, o padre? Você está enganado. Sou eu quem cuida da igreja. Eu limpo o chão, arrumo os bancos, tiro o pó do altar. Eu lavava até a roupa do padre. Aquele miserável... — Nochay preparava mais uma flecha. — Trabalhando aqui descobri sobre o Olho do Diabo e o ouro. Quando vi seu guia sair e voltar para seu corpo, na noite em que te ajudei, senti que você não estava aqui por acaso.


— Mas... Os espectros... O Padre?




— Com certeza não é obra do padre. Alguém os evocou para tentar pegar a pedra poderosa, o Olho do Diabo, que os cinco garimpeiros encontraram. Cinco garimpeiros, cinco espectros. Entendeu?


— E como você não virou zumbi? — Coloquei cera de abelha no ouvido. — Não foi o padre? — disse Benedito com o peito ensangüentado. — Então é bruxaria?


Nochay pensou na avó de Roy, sentada no banco da igreja. Você foi minha salvação. Agora, pego o ouro e a pedra, troco pela minha amada, Dos-Teh-Seh e fujo para Dallas. — o índio atirou a flecha bem no coração de Benedito, rompendo o cordão da guia.


Com a morte de Benedito seu Orixá foi definhando até sua luz apagar-se por completo. A bruma densa formou-se novamente. Os espectros muito feridos recolheram seus chapéus de mariachis e partiram juntamente com seus dragões. Um deles foi a pé. O do vermelho claro.


Nochay queria somente o ouro, a pedra poderosa daria a Cochise em troca da amada. De repente um mau cheiro veio com o vento. Rapidamente correu, escondendo-se atrás da porta. O fedor ficou mais forte e uma pessoa adentrou a antessala. Sem hesitar, Nochay acertou com sua machadinha a cabeça do homem que vinha passando. O corpo pesado caiu com a cabeça a sangrar.




— Desculpe xerife... Mas?!... É o Bob Rola Bosta?! O catador de estrume...




— Ora, ora, ora! Veja só se não é o apache maricas. Matou todo mundo pra ficar com o ouro da igreja? — disse Tedy, enquanto descia a escada. Apontava a arma para o índio. — Como ficou sabendo do ouro e do Olho do Diabo? Só eu o padre e o rola bosta aí, é que sabíamos de tudo. Agora não importa.




O cheiro nauseabundo enjoou Nochay.


— Impressionante como estes tampões de cera de abelhas funcionam contra estes seres infernais. O padre já havia me avisado do pressentimento ruim que teve, quando viu o forasteiro. E depois quando o vi lutando com os índios e os tiros dos irmãos Vanili, que não acertaram o homem. — foi dizendo Tedy. — Aí quando vi o negro deixar aquele espírito com os espectros e correr pra cá, e você vindo atrás, tudo fez sentido. Uma coisa me intriga, não consegui descobrir de onde vem essa bruxaria.


Nochay estava com a flecha apontada para o xerife. Verde de tão enjoado que estava, pelo hálito que vinha com o vento, começou a sentir tonturas.


— O que está acontecendo? — perguntou a velhinha surda por conveniência.


— Ela é a bruxa responsável pela maldição. — gritou Nochay na tentativa de distrair o xerife, mas a tontura forte fez tudo girarr.




— O quê? — perguntou a velhinha parando no alto da escada para retirar o tampão de cera de abelhas do ouvido e conferir se havia pisado no estrume.


Ao levantar a perna para olhar, desequilibrou-se caindo por cima de Tedy que disparou a arma acidentalmente, matando a velhinha. Pobre velha, só tinha ido rezar pela alma do neto. O xerife levantou e ao se virar para Nochay recebeu uma flechada certeira no peito, do índio que tombava desfalecido. Os dois caíram bem próximos, um ao lado do outro. Cabeça com cabeça. E último suspiro de Tedy, veio com palavras diretamente no nariz de Nochay.


— Eu... só... queria... — outro suspiro. — o poder do Olho do Diabo... para acabar com esse maldito... bafo...


Minutos mais tarde:


— Acho que nosso plano deu certo, Glória. Só foi um pouco antes da hora, graças ao forasteiro. — disse Gaynor enquanto descia a escada.




Nochay estava recobrando os sentidos e chamava por Dos-Teh-Seh. — O índio ainda está vivo. O que faremos com ele? — perguntou Glória — Ainda não chegou a vez dele.




— Ainda bem que aquele padre metido à exorcista se foi. Já estava dando nos nervos. Agora é só pegar o Olho do Diabo e dar o fora daqui.




— Que tal Eastwick, Glória? Mas vamos deixar a maldição aqui. Esta cidade merece. — Ótima idéia, Gaynor. Acho que lá Sobreviveremos melhor com todo o poder que o Olho do Diabo nos trará.




Glória assoviou, chamando o dragão vermelho claro, que agora assumira a cor rosa e totalmente purpurinado, apareceu, girando de braços abertos. As irmãs bruxas montaram no dorso do dragão e partiram.


— Eastwick ai vamos nós...


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